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segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Será o fim das Transfusões de Sangue?


Uma jovem cardiologista brasileira demonstra que transfusões podem trazer mais riscos que benefícios.
Quem, afinal, deve recebê-las?





EM CASA 
Ludhmila na UTI cirúrgica do InCor, em São Paulo. O estudo que ela realizou com 512 pacientes mudou o comportamento dos médicos
A goiana Ludhmila Abrahão Hajjar nunca teve dúvidas sobre sua vocação. Aos 7 anos, pediu um esqueleto de presente. Aos 8, um kit para simular pequenas cirurgias. “Quando alguém se machucava, eu corria para ver o sangue”, diz. Aos 17, já cursava medicina na Universidade de Brasília. Agora, aos 32, já reconhecida como profissional, está desafiando uma das práticas mais arraigadas entre os cirurgiões. E, de novo, o motivo de sua inquietação é o sangue. Mais precisamente o excesso de transfusões de sangue. Quando alguém precisa passar por uma cirurgia demorada (acima de três horas de duração), quase sempre recebe uma transfusão de sangue. O objetivo é compensar a perda sanguínea que ocorre durante o procedimento. As transfusões são muito comuns em cirurgias cardíacas como ponte de safena, troca de válvula e transplantes. Se a quantidade de hemoglobina (proteína responsável pelo transporte de oxigênio para os tecidos) cai a níveis inferiores a 10 gramas por decilitro de sangue, o cirurgião pede uma transfusão. Os médicos não se perguntavam de onde havia saído esse limite. Ludhmila, porém, decidiu investigar o procedimento em seu doutorado, orientado por José Otávio Auler Jr., na Universidade de São Paulo. Descobriu que ele se justifica pela tradição – e não pelo embasamento científico.
A história é antiga. Em 1934, o americano John Lundy criou na Clínica Mayo o primeiro banco de sangue do mundo. Em 1942, ele propôs o limite de 10 g/dL baseado na observação de seus pacientes. Desde então a recomendação vem passando de geração em geração. “Não podemos continuar fazendo medicina em 2011 baseados num relato de 1942”, afirma Ludhmila. Para colocar a recomendação à prova, ela realizou um estudo com 512 pacientes do Instituto do Coração (InCor), em São Paulo. Eram doentes graves, com perfil semelhante (tinham diabetes, hipertensão, insuficiência cardíaca), que foram submetidos a cirurgias cardíacas.
Metade do grupo recebeu sangue quando o nível de hemoglobina caiu a 10 g/dL. A outra metade só passou pela transfusão quando o índice ficou abaixo de 7 g/dL. O que ela comprovou? Os doentes que receberam menos sangue se recuperaram tão bem quanto os que receberam mais sangue. Uma segunda comparação (pacientes graves que receberam sangue versuspacientes que não receberam sangue, por estar com índices entre 7 g/dL e 10 g/dL) revelou que a transfusão aumenta em 20% a taxa de mortalidade e de complicações clínicas a cada bolsa de sangue recebida. Ficou a impressão de que quanto menos sangue se receber, melhor.

O trabalho foi publicado em outubro no Journal of the American Medical Association com elogios no editorial. “Esse estudo é uma adição notável às evidências anteriores”, escreveu Lawrence Tim Goodnough, da Universidade Stanford. “Elas sugerem que reduzir ou evitar as transfusões em pacientes cardíacos melhora o resultado do tratamento.”

O excesso de transfusões acarreta três graves problemas. O primeiro é o risco de que o sangue esteja infectado por bactérias ou vírus. Nem todos os bancos fazem o teste rápido do HIV. Se o doador estiver na janela imunológica (período que o organismo leva, a partir de uma infecção, para produzir anticorpos que possam ser detectados por exames), o paciente poderá ser infectado. Também poderão ocorrer disfunções vasculares ou inflamações no pulmão. O segundo problema está relacionado aos custos. Uma bolsa de sangue com 350 mililitros custa de R$ 300 a R$ 800. A maioria dos pacientes recebe de duas a três. Se o doente passa mais de sete dias no hospital, costuma receber pelo menos uma bolsa para compensar o sangue perdido em sucessivas coletas para exames.

O terceiro problema é a falta de doadores. Sangue é um artigo raro, que não deve ser desperdiçado. “Não pretendo dizer que agora é proibido transfundir”, diz Ludhmila. “O importante é que o médico decida dar o sangue a partir da avaliação individual da condição do paciente, e não baseado num número mágico.” Uma pessoa com infarto agudo ou em choque (estado anormal de falta de oxigenação nos tecidos, que pode ser fatal) pode se beneficiar de sangue numa fase mais precoce.


“Não podemos continuar fazendo medicina em 2011 baseados num relato de 1942”, diz Ludhmila.



No InCor, o trabalho de Ludhmila já mudou o comportamento dos médicos. “Nossa conduta agora é evitar a transfusão”, diz Noedir Stolf, chefe do departamento de cirurgia cardíaca. Nas últimas décadas, Stolf realizou mais de 300 transplantes de coração. Segundo ele, a ideia de evitar as transfusões não é nova. “Nenhum outro estudo, porém, havia chegado a conclusões sólidas como esse.”

O estudo repercutiu rapidamente entre os médicos estrangeiros. Ludhmila foi convidada a dar uma aula no Congresso da American Heart Association. Também deu palestras pela webcam para médicos da Universidade de Washington e Universidade de Michigan. Seu maior incentivador foi o cardiologista Roberto Kalil Filho, que cuida da saúde dos mais importantes figurões da República. “Ele sabe tudo de medicina”, diz a médica. “Quando eu estava na residência, foi ele quem me mandou fazer a pesquisa.”

A moça que saiu de Anápolis para perseguir o sonho de ser médica (a contragosto do pai fazendeiro) não faz outra coisa da vida. Coordena a UTI cirúrgica do InCor e a UTI cardiológica do Sírio-Libanês. E também a UTI do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo. Mora sozinha e não tem namorado: “A coisa não vai para a frente. Ninguém aguenta o meu celular”. Ela é de poucas vaidades. Uma vez a cada quatro meses a mãe vem de Anápolis decidida a arrastá-la até o cabeleireiro. Consegue, mas logo o celular toca. 

Fonte: Revista Época

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